Há 24 anos, a empresa NuvoMedia lançava The Rocket eBook, o reading device pioneiro dos livros eletrônicos em todos os sentidos
Desde o lançamento do primeiro reading device comercializável, pois antes deste houve protótipos que não chegaram às prateleiras, houve uma mudança de paradigma no mercado de eBooks. As eBookStores, lojas que, nos anos 2000, vendiam apenas livros eletrônicos, hoje concorre diretamente com as plataformas de aplicativos. Ou seja, se antes os eBooks tinham o poder de concentrar audiência em sites específicos, hoje o conteúdo dos eBooks é usado por muitos players, como Amazon e Google, apenas como isca para atrair consumidores para outros produtos digitais. Hoje, portanto, há um movimento de tráfego e audiência maior nas stores de aplicativos do que nas stores especializadas em eBooks.
Entre todos os equipamentos para leitura lançados até hoje, tanto da primeira quanto da segunda geração, existe um que criou um modelo de negócios que eu chamaria de perfeito. E, para este, gostaria de abrir uma exceção e explicar um pouco melhor a sua história, pois agora em 2018 ele completa vinte anos de história e pioneirismo na área de livros eletrônicos.
Eu poderia até tentar tecer minhas considerações com outros equipamentos que o copiaram, como os devices da série Kindle ou os da família Kobo, mas isso não ajudaria a compreender a transição do livro impresso para o livro digital na sua gênese. Mesmo porque a própria pontocom Amazon, por exemplo, foi um dos websites que comercializou o Rocket eBook, assim que este fora lançado, e foi com este aparelho que a Amazon verdadeiramente aprendeu a vender o seu famoso Kindle. Mas essa é uma outra história.
Voltando, então, no tempo, no intuito de resgatar os primórdios das tentativas, de erros e acertos na comercialização de eBooks, quando foi lançado em 1998 pela empresa californiana NuvoMedia Inc., sediada em Palo Alto, o The Rocket eBook trazia em sua estante virtual (chamada originalmente bookshelf) uma versão eletrônica do clássico Alice no País das Maravilhas.
A aventura de Alice foi lançada, em 1865, pelo inglês Charles Lutwidge Dogson, ou simplesmente Lewis Carroll (1832-1898). Traduzido para mais de 30 línguas, devido ao seu sucesso, incluindo o árabe e o chinês, Alice já havia ganhado até uma edição em braile. Creio que não tenha sido à toa que o idealizador do Rocket eBook, Martin Eberhard, tenha escolhido o clássico de Carool para estrear uma edição virtual no novo device.
O livro de Carroll narra as aventuras de uma garota que, depois de correr atrás de um coelho, vai parar num mundo de faz de conta. E o Rocket eBook, foi a impressão que tive assim que coloquei minhas mãos em um, de ter vindo direto desse mundo.
O Rocket eBook estreou a primeira geração dos e-readers
Quando vi o Rocket eBook pela primeira vez, simplesmente fiquei mudo, sem palavras, sem fôlego. Achei aquilo tudo simplesmente extraordinário. E alguma coisa dentro de mim me intuia para eu prestar mais atenção naquilo, foi exatamente o que aconteceu. Eu já não tinha mais espaço físico em minha casa para guardar todos os livros que gostaria de adquirir, então, a partir daquele momento decidi que não queria fazer outra coisa na vida, queria apenas trabalhar com os livros eletrônicos. Aliás, foi assim que começou o meu trabalho com os eBooks.
O aparelhozinho, em minha opinião, revolucionou o conceito de livro para a geração X que nasceria na Era Digital. O Rocket trouxe os eBooks à ordem do dia e construiu uma nova forma de existir dos textos literários. Além de guardar as fontes tipográficas, ilustrações e layouts de documentos de uma forma segura em arquivos minúsculos, ajudou a disseminar uma ideia e vantagem que todos os amantes lúdicos de livros esperavam dos eBooks, o de poder levá-los a qualquer lugar, e lê-los a qualquer hora, sem precisar ficar preso à grande e pesada tela do computador de mesa ou a minúscula telas dos antigos Palmtops.
Também sempre gostei de videogames e, embora o mercado trouxesse os mais avançados consoles e periféricos para jogos eletrônicos (e os games evoluindo sempre mais), nunca me desfiz do meu Atari 2600. Sempre o guardei comigo — mesmo depois de ter comprado mais consoles da família Nintendo, PlayStation, Xbox e por aí vai. Existe uma razão bem simples para este meu fascínio: o Atari, tão famoso na década de 1980 (quem da minha geração não teve ou quis ter um?), foi base para instalar uma lógica para a produção em série de jogos eletrônicos. O fato é que a indústria de videogames nunca teria sido a mesma se não fosse o Atari 2600.
O Atari, que foi sinônimo de videogame por um longo tempo (até 1989 foram produzidos jogos para sua plataforma), introduziu o uso doméstico de games no público geral, dando origem a uma importante indústria de entretenimento, que modernamente é equiparada sempre a indústria cinematográfica quando se fala em cifras. E penso que o Rocket (alguns erroneamente pensam que o Kindle fez isso, mas quem conhece a história dos livros eletrônicos sabe que não foi) poderia ser comparado ao Atari, nesse sentido.
Vamos pegar como exemplo um título que é um verdadeiro clássico da cultura pop: o Enduro. A lógica por trás desse game nada mais era que a de um carrinho, relativamente estático, que só se movia para a direita e para a esquerda, na tela, e que se desvencilhava de outros carrinhos que apareciam de cima para baixo, numa pista de três vias. O jogo, basicamente, era o tempo todo assim. O que se alternavam era somente as cenas que apareciam no fundo da tela.
Essa lógica simples, mas inteligente e criativa, é usada até hoje nos enredos dos games de corrida, como em franquias de sucesso como Need for Speed. É claro que hoje os carros dos games buzinam, se espatifam; são totalmente customizáveis, é possível escolher o seu motor, cor, modelo, até optar entre o câmbio automático ou manual, etc. Porém, quem joga videogame sabe que a forma como um game de corrida é desenvolvido por engenheiros, seja da Sega, da Nintendo, da Atari, EA, da Microsoft ou da Sony, está lá no Enduro: umas cenas que passam e mudam variavelmente, e um carro tentando ultrapassar os outros para ganhar a corrida.
Fazendo uma analogia com os livros eletrônicos, desde a década de 1970 quando se intensificaram os projetos para tentar mimetizar o papel, os engenheiros de Palo Alto sabiam que era preciso criar um mecanismo para a produção de eBooks, dentro de um conceito de ambiente gráfico. E o Rocket eBook fez as empresas, que estavam tentando o tempo todo desenvolver protótipos de livros eletrônicos, repensarem suas estratégias.
Hoje, o que seria um e-reader?
Um dispositivo portátil eletrônico, com tela plana de cristal líquido colorida ou não [LCD, E-Ink, etc.], sensível ao toque de uma caneta ou dedo. Com controle de luminosidade ajustável para prevenir canseira nos olhos e problemas de saúde dessa ordem. Com um “sistema operacional” interno que absorvesse e suportasse um browser — daí o aplicativo reader, “leitor”, em inglês — que enxergasse, tal como os navegadores Internet Explorer, Chrome, FireFox, Opera, os textos inteligentes ou hipertextos. Igualzinho à Internet.
Teríamos, então, um computador pequeno, de bolso. Tal qual o antigo eBookMan da Franklin ou o LIBRIè, da Sony. No entanto, para se chegar a uma ideia concebida do que seria um e-reader, hoje, começou-se usando as bases de existência do Rocket eBook.
Mas tudo isso acontece de uma forma muito rápida, num intervalo de tempo bem menor que aquele levado entre o aparecimento de computadores de oito bits, a disseminação do Atari 2600 e o megalançamento do PlayStation 4, Xbox One ou Nintendo Switch.
No Brasil, especificamente falando, em parte por causa da antiga Reserva de Mercado que existiu e também por causa da linguagem padrão do equipamento, a grande vantagem de ter, naquela época, um videogame Atari era a de poder trocar com os amigos os títulos pessoais. Exatamente porque o Atari era um videogame que todos tinham, várias empresas o licenciaram, e os cartuchos (uma placa de circuito integrado onde eram gravados os jogos através das ROM’s — Read Only Memory) eram compatíveis com todo o sistema, porque de certa forma também era um dos únicos sistemas no mercado. Todos os consumidores poderiam trocar ideias e dicas sobre os jogos (que todos conheciam e tinham o acesso).
A isto damos o nome de interoperabilidade
Mas isso não foi pensado nos eBooks quando nasceram: os livros eletrônicos eram desenvolvidos num formato incompatível com os de outros modelos de eBooks. Então um livro digital do Paulo Coelho, por exemplo, desenvolvido pela editora virtual X, que usasse o modelo de eBook X para leitura em mãos, não poderia ser lido num aparelho de eBook Y, porque eles eram aparelhos cujos formatos eram incompatíveis. Este cenário começaria a mudar depois, com a chegada, em setembro de 1999, da Especificação Open eBook [OeB], hoje conhecida como ePub, que criaria um formato universal de linguagem de programação extensível, baseado em xHTML, para todos os eBooks.
O Rocket eBook, quando nasceu, desenhou uma lógica para a produção de livros eletrônicos, e agora quero exagerar, tal qual a lógica para a produção de carros de Henry Ford. No sentido mais restrito, da massificação deste tipo de produto. A Revolução dos eBooks poderia, desta vez, transformar o mundo do conhecimento para melhor. Porque agora não se tratava apenas de produto de consumo digamos supérfluo, mas de literatura, de geração e distribuição de conteúdo, de democratização do conhecimento.
O Rocket eBook, que deixou de ser produzido depois de sua 2ª edição (chamada ReB 1100, e cuja patente fora mais tarde adquirida pela Google), poderia até ser um objeto saído das aventuras de Alice no País das Maravilhas, mas sua tecnologia é tangível, existe e está nosso meio. Tanto através de equipamentos como os tablets e smartphones, quanto através de aplicativos que o simulam a leitura de livros para toda e qualquer plataforma.
Na primeira versão, do tamanho de um livro de papel, o Rocket eBook media 19 centímetros de altura por 12 centímetros de largura e pesava apenas 650 gramas, um pocketbook. Incrível, bem menos que as primeiras edições de muitos tablets surgida no início dos anos 2000. O Rocket também era capaz de armazenar até quatro mil páginas de textos e imagens, o que significava 12 romances médios guardados em sua memória.
E tudo o que se construiu e elaborou em termos de eBooks a partir daí, incluindo o famoso Kindle e o simpático Kobo, teria no mínimo as ferramentas que o Rocket oferecia. Senão, vejamos, o Rocket eBook da primeira 1ª geração trazia:
- Acesso às bibliotecas livrarias virtuais, com a possibilidade de aquisição de obras gratuitas, até então impensado no modo real: mais de 2.000 títulos grátis e mais milhares de best-sellers e clássicos antes esgotados;
- Possibilidade de criação de biblioteca pessoal com um software chamado RocketLibrarian;
- Capacidade de armazenamento padrão de até 4.000 páginas de texto e gráficos, mais que os antigos Palmtops;
- O leitor podia publicar suas próprias RocketEditions, importando documentos pessoais e da Internet, usando um software chamado RocketWriter;
- Marcadores de página e busca rápida dessas marcações;
- Tamanho de um livro de papel: 5 “ x 7½ “ x 1½;
- Compatível com níveis de segurança (criptografia) exigido pelos detentores de conteúdo (uma tecnologia DRM proprietária);
- Luminosidade ajustável: equipado com um backlight que o deixava ajustar a intensidade, assim pode-se ler em qualquer lugar;
- Baterias duradouras: de 20 a 40 horas;
- Busca por palavras e frases nos textos;
- Alteração de fonte, para facilitar a leitura;
- Grande capacidade de armazenamento;
- Ferramenta para sublinhar trechos nos textos;
- Memória expansível [no caso do hardware interno do Rocket, até 32 MB]
- Compatibilidade com PCs e MACs, coisa que muitas edições de Palmtops não sabiam fazer;
- Base giratória (orientação horizontal e vertical);
- Dicionário relacionado;
- Peso mínimo: 22oz ou 300 gramas;
- Ferramenta de anotação nas margens de um livro.
Assim, o The Rocket eBook não foi somente o e-reader pioneiro em todos os sentidos, ele criou o mercado de eBooks e foi o mais importante produto comercial nos primórdios dos livros eletrônicos. Sem cometer nenhum exagero, graças à intenção do Rocket eBook, de mimetizar o livro impresso, popularizar e democratizar livros e portabilizar uma biblioteca digital inteira, os leitores de vinte anos mais tarde teriam acesso a bibliotecas do tamanho daquela de Alexandria no velho mundo.
O The Rocket eBook vendeu cerca de 20 mil unidades, foi descontinuado depois que a NuvoMedia, sua fabricante, foi vendida para a Gemstar-TV Guide International.