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Eu nasci há dez mil anos atrás: desvendando a canção

Raul Seixas (1945–1989) foi um cantor, compositor e produtor musical brasileiro, frequentemente chamado de “Pai do Rock Brasileiro” por sua mistura única de ritmos nordestinos, rock e letras contestadoras.

Paulo Coelho é um escritor de renome mundial — autor de livros como O Alquimista — e, nos anos 1970, foi parceiro frequente de Raul na criação de canções que marcariam para sempre a música popular brasileira.

Juntos, eles compuseram “Eu nasci há dez mil anos atrás”, lançada originalmente em 1976 no álbum Há 10 Mil Anos Atrás, uma das obras mais icônicas de Raul Seixas. É nessa canção que se encontram as inúmeras referências históricas, religiosas e culturais que, interpretadas sob diferentes ângulos, refletem a profundidade e a irreverência típicas da dupla.

Capa do disco “Há 10 mil anos atrás” (1976)
Capa do disco “Há 10 mil anos atrás” (1976)

Indo direto ao ponto, em minha interpretação da letra de “Eu nasci há dez mil anos atrás” proponho que o trecho

Eu nasci há dez mil anos atrás
E não tem nada nesse mundo
Que eu não saiba demais”

possa ser lido como se o LIVRO (enquanto objeto e repositório de conhecimento) estivesse falando em primeira pessoa, e não o próprio Raul Seixas ou outro personagem qualquer. É como se o LIVRO dissesse: “Eu existo desde sempre e, por isso, trago em mim todas as informações possíveis”.

Essa é minha interpretação criativa que atribui um “eu-lírico” diferente do que tradicionalmente se supõe na canção.


Uma perspectiva histórica sobre a origem do livro

É natural, ao lermos o trecho anteriormente citado e pensarmos sobre minha tese, fazermos a pergunta inevitável: Existe mesmo algum livro de dez mil anos de idade?

Em termos estritamente históricos, a escrita, tal como a conhecemos, surgiu por volta de 3.400 a 3.200 a.C. na região da Suméria (atual Iraque). Antes desse período, o que se encontra são indícios de protoescritas: símbolos gravados em ossos, pedras ou cerâmicas, que não chegam a formar um texto literário completo.

Quando se fala em textos antigos, destacam-se:

  • Textos cuneiformes da Suméria (cerca de 3.200 a.C.) | escritos em tábuas de argila e considerados os mais antigos registros escritos que possuímos;
  • A Epopeia de Gilgamesh (cerca de 2.100 a.C.) | geralmente tida como a obra literária mais antiga do mundo a chegar até nós em fragmentos. Narra as aventuras do rei semilendário Gilgamesh e data do início do segundo milênio a.C.;
  • Código de Hamurábi (c. 1.770 a.C.) | um dos mais antigos conjuntos de leis escritas, gravado em pedra e em tábuas de argila.

Embora sejam grandes marcos na história da escrita, todos esses registros remontam a apenas 4 ou 5 mil anos atrás. O objeto livro em si, com folhas encadernadas, só começou a tomar forma mais tarde, consolidando-se no formato de códice (substituindo os antigos rolos) por volta do primeiro século da Era Cristã.

Então, como podemos conciliar a ideia de um livro “nascido há dez mil anos” com o fato de a escrita não existir naquela época? Se considerarmos “conhecimento” em vez de suporte físico, podemos falar de histórias e tradições orais que de fato podem ter atravessado milênios, talvez até mais de 10 mil anos, gerando lendas e mitos repassados de geração em geração.

Há quem se pergunte: qual seria, então, o livro mais antigo do mundo? A resposta varia conforme o critério. Alguns estudiosos chamam de “livro” apenas os códices encadernados, enquanto outros estendem a definição a qualquer texto preservado, seja em pedra, argila ou papiro. Nesse sentido, a Epopeia de Gilgamesh e os Textos das Pirâmides (datados de cerca de 2.300 a.C.) são frequentemente citados como exemplos de “obras literárias” das mais antigas de que se tem notícia.

Se analisarmos a canção de Raul e Paulo Coelho à luz desses dados históricos, notamos que o trecho falando de um nascimento dez milenar do “eu-lírico” — interpretado como um LIVRO — pode ter respaldo literal na cronologia da escrita. Trata-se de uma imagem poética: a ideia de que o LIVRO (ou o conhecimento) teria atravessado eras, acumulando a sabedoria de todos os tempos. Isso, sim, traduz o caráter simbólico de algo que “já viu e sabe de tudo”, como se fosse a memória da humanidade condensada em páginas ou tábuas de argila.

Partindo do pressuposto de que o “eu-lírico” da letra da canção “Eu nasci há dez mil anos atrás” possa ser interpretado como um LIVRO, vamos destrinchar cada um de seus versos.


Eu nasci há dez mil anos atrás
E não tem nada nesse mundo
Que eu não saiba demais”

Já no primeiro trecho da canção poderíamos imaginar que não é Raul Seixas — tampouco um ser imortal — quem fala, mas o próprio LIVRO. Afinal, que outro objeto, senão um livro, poderia surgir em eras remotas e ainda assim guardar tudo o que foi vivido pela humanidade?

Pensemos: antes mesmo de existir a escrita, já havia histórias que vagavam de boca em boca, portando de maneira oral, preservando lendas, mitos e vivências. Foi assim com as histórias que envolvem Moisés e Jesus. Assim que o homem dominou a arte de registrar símbolos em argila, pedra, papiro ou papel, nascia ali o germe do que hoje chamamos livro. Esse “velho sábio” atravessou séculos e civilizações, acumulando conhecimentos sobre religião, filosofia, ciências, guerras e paixões.

Quando o refrão declara:

“E não tem nada nesse mundo
Que eu não saiba demais”

podemos ouvir o eco das tábuas de argila dos sumérios, que contêm as primeiras leis e narrativas do mundo escrito. Podemos vislumbrar a Epopeia de Gilgamesh, decifrando hieróglifos, percorrendo bibliotecas incendiadas e papiros fragmentados. É como se a própria voz do LIVRO estivesse nos dizendo: “Eu já vi de tudo e carrego todas as histórias, das grandes batalhas aos pequenos dramas familiares.”

O LIVRO, ao nascer “há dez mil anos atrás”, reivindica uma antiguidade simbólica. Não é o literal “existo fisicamente há 10 mil anos”, mas sim “carrego uma memória tão antiga quanto o surgimento do saber humano.” Nesse sentido, tal criatura — feita de páginas, pergaminhos ou pedras marcadas — teria convivido com sábios, monarcas e andarilhos, guardando segredos de épocas distantes.

Ora, se os livros se tornam nossa memória tangível, poderiam mesmo assegurar: “Não tem nada nesse mundo que eu não saiba demais.” Eles são a materialização dos pensamentos, dos discursos, da imaginação de cada geração. Logo, a grandeza do conhecimento armazenado é tão vasta que se equipara a ter vivido séculos, atravessado impérios e desafiado o tempo.

Em síntese, se na canção há um “eu-lírico” que proclama ter estado presente em todos os instantes da história, por que não supor que seja o LIVRO — um ser mítico que nos acompanha, registra e, de certa maneira, constrói a própria humanidade?

Livros testemunham transformações, revoluções, descobertas científicas e, acima de tudo, mantêm viva a narrativa de quem fomos e para onde vamos. Assim, nessa visão criativa, nada mais coerente que seja o LIVRO a dizer, com toda autoridade, que nasceu há dez mil anos e nada escapa ao seu olhar.


“Eu vi Cristo ser crucificado
O amor nascer e ser assassinado”

Os Quatro Evangelhos do Novo Testamento: Mateus, Marcos, Lucas e João
Os Quatro Evangelhos do Novo Testamento: Mateus, Marcos, Lucas e João

Neste fragmento, Raul Seixas e Paulo Coelho fazem referência direta à crucificação de Jesus, fato central do Cristianismo, descrito nos quatro Evangelhos do Novo Testamento: Mateus, Marcos, Lucas e João.

Um dos relatos mais conhecidos encontra-se em Mateus 27, que apresenta a prisão, o julgamento e a crucificação de Cristo. A ideia de “o amor nascer e ser assassinado” pode ser interpretada como uma metáfora para Jesus, comumente visto pelos cristãos como a encarnação do amor divino (cf. 1 João 4:8, que declara “Deus é amor”).

Ao descrever o momento em que Cristo foi morto, a letra retrata a violência contra a figura que representa o amor absoluto, sintetizando o paradoxo de um amor que vem ao mundo e é rejeitado até as últimas consequências.


“Eu vi as bruxas pegando fogo
Pra pagarem seus pecados, eu vi”

“Malleus Maleficarum” (em português, “Martelo das Feiticeiras”), escrito por Heinrich Kramer (Institoris) e publicado em 1486/1487.
“Malleus Maleficarum” (em português, “Martelo das Feiticeiras”), escrito por Heinrich Kramer (Institoris) e publicado em 1486/1487.

Este verso faz referência às mulheres acusadas de bruxaria que foram queimadas em fogueiras durante a Idade Média e períodos posteriores — perseguições amplamente associadas à atuação dos tribunais da Inquisição. Um documento histórico que ilustra como essas acusações eram fundamentadas e justificadas é o “Malleus Maleficarum” (em português, “Martelo das Feiticeiras”), escrito por Heinrich Kramer (Institoris) e publicado em 1486/1487.

O Malleus Maleficarum funcionava como um manual de identificação, interrogatório e julgamento de supostas bruxas, legitimando práticas de tortura e execução. Dessa forma, o trecho “bruxas pegando fogo” retrata uma das fases mais sombrias da história europeia, quando mulheres (e, em menor grau, homens) eram condenadas por práticas consideradas heréticas, resultando em perseguição, julgamentos arbitrários e, muitas vezes, punições cruéis em praça pública.


“Eu vi Moisés cruzar o Mar Vermelho”

Moisés Cruzando o Mar Vermelho
Moisés Cruzando o Mar Vermelho

Aqui, o “eu” que narra faz menção à passagem em que Moisés lidera o povo hebreu na fuga do Egito, abrindo o Mar Vermelho para que pudessem atravessá-lo a pé enxuto. Esse relato encontra-se no Livro do Êxodo, especificamente no capítulo 14, parte fundamental do Antigo Testamento.

Ao dizer “Eu vi Moisés cruzar o Mar Vermelho”, o LIVRO nos remete a um dos episódios mais marcantes das narrativas hebraicas, simbolizando libertação e fé em meio à adversidade. É como se o LIVRO — por ter presenciado e registrado todos os momentos históricos e sagrados — testemunhasse pessoalmente esse acontecimento decisivo para a história do povo de Israel.


“Vi Maomé cair na terra de joelhos”

Alcorão
Alcorão

Neste verso, quem narra — o LIVRO, em nossa interpretação — menciona Maomé (Muhammad), o profeta fundador do Islã. Ainda que a letra não se refira a um episódio específico, podemos relacioná-la ao contexto em que Muhammad recebia as primeiras revelações do anjo Gabriel (Jibril) no monte Hira, um marco inicial do Islamismo. Essas revelações estão registradas no Alcorão, livro sagrado dos muçulmanos.

Tradicionalmente, de acordo com a crença islâmica, Muhammad costumava retirar-se em oração e meditação, e foi em uma dessas ocasiões que recebeu o comando “Lê” ou “Recita” (em árabe, Iqra), conforme descrito no Alcorão, particularmente na Sura Al-Alaq (96) — considerada a primeira revelação.

O ato de “cair na terra de joelhos” pode ser interpretado como uma imagem poética que indica entrega, devoção e reverência diante do sagrado, algo coerente com o profundo respeito que o profeta sentia ao receber a palavra divina. Nesse sentido, o LIVRO “testemunha” esse momento, reforçando sua onisciência ao presenciar os grandes eventos espirituais da humanidade.


“Eu vi Pedro negar Cristo por três vezes Diante do espelho, eu vi”

Pedro, um dos principais discípulos de Jesus
Pedro, um dos principais discípulos de Jesus

Aqui, o LIVRO afirma ter presenciado o episódio em que Pedro, um dos principais discípulos de Jesus, o nega três vezes antes do canto do galo. Esse acontecimento é encontrado nos quatro Evangelhos do Novo Testamento, sendo relatado com maior destaque em Mateus 26:69-75, Marcos 14:66-72, Lucas 22:54-62 e João 18:15-27.

A parte “diante do espelho” não aparece literalmente nessas passagens bíblicas, mas pode ser interpretada como uma liberdade poética de Raul Seixas e Paulo Coelho. O espelho funciona como símbolo de autorreflexão e culpa, sugerindo que, ao negar Cristo, Pedro teria que encarar a si mesmo, confrontando o peso de sua própria traição. Nesse sentido, o LIVRO, ao testemunhar esse instante, reforça seu papel de onisciência, presenciando não apenas fatos históricos ou religiosos, mas também a dimensão pessoal e íntima das personagens bíblicas.


“Eu vi as velas se acenderem para o Papa”

A 16th century copy of Liber Pontificalis
A 16th century copy of Liber Pontificalis

Interpretando que o LIVRO está contando a história, esse verso sugere ter presenciado cerimônias e rituais típicos da tradição católica, especialmente aquelas em que o Papa (como líder máximo da Igreja) é honrado com reverência e luz de velas.

O catolicismo construiu, ao longo dos séculos, uma rica liturgia e protocolos solenes para suas celebrações. Um possível registro histórico que compila a vida e os feitos dos Papas é o “Liber Pontificalis” (ou Livro dos Papas), cuja redação iniciou-se por volta do século VI. Nele, encontram-se relatos sobre cerimônias e honras prestadas aos sucessores de São Pedro — considerado o primeiro Papa, segundo a tradição católica (cf. Mateus 16:18, que costuma embasar a sucessão petrina).

A prática de acender velas para o Papa durante ritos solenes, aliás, está documentada em diversos registros litúrgicos ao longo da história da Igreja, como o Missal Romano, que detalha o uso de velas em celebrações especiais.

Dessa forma, ao dizer “Eu vi as velas se acenderem para o Papa”, o LIVRO se coloca como testemunha de séculos de devoção, refletindo a continuidade de uma instituição religiosa cujas cerimônias se mantiveram vivas através dos tempos — a ponto de serem gravadas e reinterpretadas em compêndios e documentos que contam a história do papado.


“Vi Babilônia ser riscada do mapa”

Na canção, o LIVRO (em nossa interpretação) afirma ter presenciado a queda de Babilônia, cidade-império da antiguidade cujas ruínas localizam-se no atual Iraque. A imagem de “ser riscada do mapa” remete tanto a fatos históricos quanto a profecias bíblicas:

  • Biblicamente, a destruição de Babilônia é anunciada em livros proféticos como Isaías (13:19–22) e Jeremias (51:37), onde se fala do seu fim trágico e abandono futuro.
  • Historicamente, a cidade de Babilônia foi conquistada pelos persas em 539 a.C., e, com o passar dos séculos, acabou abandonada. Escritos de autores gregos, como Heródoto, também mencionam a grandeza da cidade e sua posterior decadência.

Nesse trecho, portanto, o LIVRO se coloca como testemunha de um evento que entrelaça dados históricos e passagens das Escrituras Sagradas, reforçando seu caráter de repositório onisciente das transformações do mundo antigo.


“Vi conde Drácula sugando o sangue novo / E se escondendo atrás da capa, eu vi”

Romance Dracula, de Bram Stoker (publicado em 1897)
Romance Dracula, de Bram Stoker (publicado em 1897)

Neste verso, o LIVRO — em nossa interpretação como o narrador onisciente — relata ter presenciado um dos ícones mais marcantes da literatura de terror gótica: o conde Drácula, figura que ganhou notoriedade universal através do romance Dracula, de Bram Stoker (publicado em 1897).

Embora o vampiro já fizesse parte do folclore e de crenças populares do leste europeu, foi a obra de Stoker que consolidou o mito de Drácula como o aristocrata sombrio que se alimenta de sangue humano e se esconde em meio às trevas.

A citação “sugando o sangue novo” evoca o cerne do vampirismo — a busca pela juventude e vida através do sangue das vítimas — e “se escondendo atrás da capa” remete ao traço dramático do personagem, sempre envolto em mistério e escuridão. Desse modo, o LIVRO, que diz ter presenciado todos esses eventos fantásticos, conecta um símbolo clássico da literatura de horror a sua perspectiva de “quem já viu de tudo” ao longo dos tempos.


“Eu vi a arca de Noé cruzar os mares”

A Arca de Noé

Nessa estrofe, o LIVRO menciona o evento bíblico do Dilúvio e a construção da arca por Noé. Esse relato se encontra no Livro do Gênesis, capítulos 6 a 9, no Antigo Testamento, descrevendo como Deus teria instruído Noé a construir uma grande embarcação para salvar sua família e os animais de um cataclismo global. O mesmo conto, inclusive, é descrito na A Epopeia de Gilgamesh com detalhes ainda mais precisos do que a versão bíblica.

Ao afirmar ter “visto” a arca de Noé cruzar os mares, o LIVRO reforça a ideia de que presenciou não apenas eventos históricos, mas também narrativas de cunho religioso, perpetuadas e registradas há milênios. De maneira simbólica, exibe seu papel de testemunha dos grandes mitos e lendas que compõem o imaginário coletivo da humanidade.


“Vi Salomão cantar seus salmos pelos ares”

Aqui, o LIVRO faz alusão à figura de Salomão, um rei de Israel cujas histórias estão registradas nos livros de 1 Reis e 2 Crônicas, no Antigo Testamento. Embora a maioria dos Salmos seja tradicionalmente atribuída a Davi, pai de Salomão, há passagens que mencionam a vasta produção literária de Salomão, incluindo canções e provérbios.

Em 1 Reis 4:32, por exemplo, é dito que Salomão “pronunciou três mil provérbios, e seus cânticos foram mil e cinco”. Embora a Bíblia não identifique esses cânticos individualmente como “salmos”, o verso da canção pode estar poeticamente associando as composições musicais de Salomão à tradição salmista de Israel.

Ao dizer “vi Salomão cantar seus salmos pelos ares”, o LIVRO reforça o sentido de ter presenciado momentos de inspiração espiritual, sabedoria e louvor provenientes de uma das figuras mais reverenciadas do Antigo Testamento.


“Eu vi Zumbi fugir com os negros pra floresta Pro quilombo dos Palmares, eu vi”

O Quilombo dos Palmares, de Edson Carneiro
O Quilombo dos Palmares, de Edson Carneiro

Nesse verso, o LIVRO descreve um momento-chave da história do Brasil colonial: a resistência negra liderada por Zumbi dos Palmares (1655–1695). Zumbi foi um dos grandes líderes do Quilombo dos Palmares, comunidade formada por escravizados que escapavam das fazendas e engenhos e se refugiavam na região da Serra da Barriga (atual estado de Alagoas).

Embora não exista um único livro que relate esses fatos, diversos registros históricos e estudos acadêmicos tratam de Zumbi e dos quilombos. Uma referência importante para quem deseja conhecer mais sobre o tema é a obra O Quilombo dos Palmares, de Edson Carneiro, que, embora não seja contemporânea aos eventos, reúne informações obtidas em documentos, crônicas e relatos seiscentistas e setecentistas.

Outra referência notável é Palmares: A Guerra dos Escravos, de Décio Freitas, que faz um estudo aprofundado das fontes coloniais acerca da resistência no Quilombo dos Palmares.

Ao dizer “Eu vi Zumbi fugir com os negros pra floresta”, o LIVRO reforça seu papel de testemunha das lutas pela liberdade, evidenciando que, em sua perspectiva onisciente, presenciou tanto eventos míticos e religiosos quanto embates sociais e políticos que moldaram a história.


“Eu vi o sangue que corria da montanha / Quando Hitler chamou toda a Alemanha / Vi o soldado que sonhava com a amada / Numa cama de campanha, eu li”

A Ascensão e Queda do Terceiro Reich (The Rise and Fall of the Third Reich), de William L. Shirer
A Ascensão e Queda do Terceiro Reich (The Rise and Fall of the Third Reich), de William L. Shirer

Nessas linhas, o LIVRO evoca um dos episódios mais sombrios do século XX: o período em que Adolf Hitler ascendeu ao poder (1933) e conclamou a Alemanha a embarcar em sua ideologia expansionista, culminando na Segunda Guerra Mundial (1939–1945). O “sangue que corria da montanha” pode simbolizar os campos de batalha e os incontáveis conflitos que se alastraram pela Europa, especialmente em regiões montanhosas como a frente italiana ou os Bálcãs, além do sofrimento generalizado que marcou a guerra.

A citação “Quando Hitler chamou toda a Alemanha” remete às grandes mobilizações convocadas por ele, amplamente documentadas em discursos oficiais e em registros históricos. Para quem deseja uma fonte detalhada do período nazista e das campanhas militares, A Ascensão e Queda do Terceiro Reich (The Rise and Fall of the Third Reich), de William L. Shirer, é um estudo clássico sobre o regime hitlerista. Outra obra relevante, embora escrita pelo próprio líder nazista antes de chegar ao poder, é Mein Kampf, na qual Hitler expõe parte de sua ideologia.

Já a imagem do soldado que “sonhava com a amada numa cama de campanha” faz referência à humanidade que persiste mesmo em tempos de guerra, algo frequentemente retratado em diários, cartas e relatos de soldados no front. O LIVRO dá voz a essas duas dimensões — a macro-histórica, marcada pelos horrores do conflito, e a pessoal, expressa nos sonhos e saudades do combatente. Dessa forma, reafirma seu caráter onisciente, registrando desde grandes acontecimentos políticos até a intimidade daqueles que viveram a tragédia da guerra.


“Eu li os símbolos sagrados de Umbanda / Eu fui criança pra poder dançar ciranda / E, quando todos praguejavam contra o frio / Eu fiz a cama na varanda”

Umbanda: A New Religion Born in Brazil, de Diana DeGroat Brown
Umbanda: A New Religion Born in Brazil, de Diana DeGroat Brown

Aqui, o LIVRO cita a Umbanda, religião brasileira de matriz afro-brasileira que mescla elementos do catolicismo, do espiritismo kardecista e de tradições indígenas e africanas. Embora a Umbanda não possua um “livro sagrado” único, há registros e estudos sobre sua fundação e práticas, como por exemplo a obra Umbanda: A New Religion Born in Brazil, de Diana DeGroat Brown,
que fornece uma visão antropológica sobre o surgimento e o desenvolvimento dessa religião no início do século XX.

A menção a “símbolos sagrados” pode remeter aos “pontos riscados”, às “guias” (colares) e aos cantos (ou “pontos cantados”) que fazem parte dos rituais de Umbanda, cada qual repleto de significados místicos.

Em seguida, o verso “Eu fui criança pra poder dançar ciranda” dá um tom de simplicidade e alegria típica da infância, remetendo a uma tradição popular brasileira em que se dançam cirandas em rodas, simbolizando união e coletividade. Por fim, a passagem “E, quando todos praguejavam contra o frio / Eu fiz a cama na varanda” pode ser vista como uma imagem poética de resistência ou desprendimento material — ao contrário dos outros, que reclamam do desconforto, o LIVRO (enquanto símbolo de sabedoria e experiência) simplesmente se ajusta à condição presente.

Assim, nesse trecho, o LIVRO afirma ter contato tanto com elementos de uma religião sincrética (Umbanda) quanto com manifestações populares (ciranda), e ainda demonstra desprendimento diante das intempéries (o frio), reafirmando seu papel como testemunha e repositório de saberes e costumes que atravessam o tempo.


“Eu ‘tava junto com os macacos na caverna
Eu bebi vinho com as mulheres na taberna”

On the Origin of Species, by Charles Darwin (1859)
On the Origin of Species, by Charles Darwin (1859)

Sob a ótica de que quem narra esses acontecimentos é o LIVRO, essas frases sugerem uma abrangência temporal imensa, indo desde um passado remotíssimo — “junto com os macacos na caverna” — até situações mais próximas da história humana, como beber vinho em uma taberna.

“Eu ‘tava junto com os macacos na caverna”

A imagem lembra o período pré-histórico, em que ancestrais humanos (ou hominídeos) viviam em cavernas. Embora não exista algum tipo de “livro sagrado” que descreva esse exato cenário, podemos relacioná-lo a teorias sobre a evolução humana, como as defendidas por Charles Darwin em On the Origin of Species (1859) e The Descent of Man (1871). Essas obras traçam a linhagem entre os primatas e o ser humano, ajudando a contextualizar a ideia de que, em algum momento, nossos antepassados próximos “viviam como macacos em cavernas”.

Ainda que o verso tenha tom metafórico ou poético, remete à noção de um tempo tão antigo que precede qualquer civilização organizada. O LIVRO, portanto, se coloca como testemunha, atravessando eras desde os primórdios da humanidade.

“Eu bebi vinho com as mulheres na taberna”

Já esta parte sugere um salto para um cenário mais histórico-medieval ou mesmo antigo, quando havia tavernas onde vinho e outras bebidas eram servidos, geralmente em ambientes urbanos ou rurais de convivência popular.

Se quisermos uma referência literária ou histórica, podemos citar cronistas e escritores medievais que descreviam a vida nas tavernas — por exemplo, Os Contos da Cantuária (The Canterbury Tales, de Geoffrey Chaucer, séc. XIV), que retratam peregrinos reunidos em estalagens, bebendo e contando histórias. Não há menção específica ao “beber vinho com as mulheres na taberna” nessa obra, mas ela ilustra bem o clima das paradas em pousadas ou tavernas na Idade Média.

Ao dizer que estava “junto com os macacos na caverna” e, ao mesmo tempo, desfrutando de vinho com companhias humanas em uma “taberna”, o LIVRO deixa claro que acompanhou a humanidade desde suas raízes evolutivas — ou até míticas — até momentos de socialização em civilizações mais desenvolvidas. É uma forma poética de abarcar todo o percurso humano, reforçando o papel onisciente desse narrador que viu (e registrou) praticamente tudo que já aconteceu.


“E quando a pedra despencou da ribanceira / Eu também quebrei a perna, eu também”

“Like a Rolling Stone”, de Bob Dylan (1965)
“Like a Rolling Stone”, de Bob Dylan (1965)

Nessa linha, o LIVRO pode estar fazendo um jogo de palavras que remete ao conceito de “rolling stone”, muito presente no universo do rock. A expressão “rolar pedra” (“rolling stone”) ganhou fama mundial por meio da canção “Like a Rolling Stone”, de Bob Dylan, lançada em 1965, e pelo próprio nome da icônica banda The Rolling Stones. Bob Dylan, além de músico, é autor de livros como Tarantula (1971) e a autobiografia Chronicles: Volume One (2004), tendo inclusive recebido o Prêmio Nobel de Literatura em 2016 por sua produção poética e musical.

A frase “quando a pedra despencou da ribanceira, eu também quebrei a perna” pode ser lida como uma metáfora para as quedas e dificuldades do próprio rock — um gênero que, apesar de sua energia e rebeldia, passou por crises e transformações ao longo das décadas.

Afirmando que também “quebrou a perna”, o LIVRO reforça sua cumplicidade com esse movimento cultural. É como se tivesse sentido na pele (ou na capa) o impacto de cada revolução musical, cada queda e ascensão, desde os tempos em que o rock começou a “rolar” feito pedra ribanceira abaixo.


“Eu fui testemunha do amor de Rapunzel”

Livro Kinder- und Hausmärchen (ou Contos de Fadas para Crianças e Adultos), dos Irmãos Grimm (Jacob e Wilhelm Grimm), publicado pela primeira vez em 1812
Livro Kinder- und Hausmärchen (ou Contos de Fadas para Crianças e Adultos), dos Irmãos Grimm (Jacob e Wilhelm Grimm), publicado pela primeira vez em 1812

Nessa linha, interpretando que o LIVRO se faz presente em diferentes culturas e épocas, surge a menção a Rapunzel, um dos contos de fadas mais conhecidos da literatura. A versão clássica desta história foi registrada pelos Irmãos Grimm (Jacob e Wilhelm Grimm) em seu livro Kinder- und Hausmärchen (ou Contos de Fadas para Crianças e Adultos), publicado pela primeira vez em 1812.

Rapunzel, trancada em uma torre, vivia isolada do mundo até encontrar o amor — geralmente na figura de um príncipe (ou nobre), que a visitava e subia até ela graças às longas tranças que lhe serviam de “escada”. Ao dizer “fui testemunha do amor de Rapunzel”, o LIVRO sugere ter presenciado essa história de fantasia e resiliência afetiva.

Há versões ainda anteriores à dos Grimm, como “Petrosinella” (publicada em Lo cunto de li cunti, do italiano Giambattista Basile, século XVII), que influenciaram o desenvolvimento posterior do conto de Rapunzel. Dessa forma, a afirmação reforça a ideia de que o LIVRO acompanhou não só mitos religiosos ou episódios históricos, mas também as narrativas folclóricas e literárias que encantaram — e ainda encantam — gerações ao redor do mundo.


“Eu vi a estrela de Davi a brilhar no céu”

A Estrela de Davi
A Estrela de Davi

Sob a ótica de que o LIVRO é o narrador onisciente, este verso remete à Estrela de Davi (ou Magen David), símbolo amplamente associado ao Judaísmo e à herança do rei Davi, figura central do Antigo Testamento. Embora não haja um texto bíblico específico que descreva a “estrela” em si, o emblema passou a ser adotado ao longo dos séculos como representação da fé judaica, ganhando destaque em sinagogas e, na modernidade, na bandeira do Estado de Israel (1948).

Historicamente, sua origem é tema de estudos em obras sobre o desenvolvimento dos símbolos judaicos, inclusive em textos cabalísticos medievais que atribuem significados místicos à forma hexagonal. Ao dizer “vi a estrela de Davi a brilhar no céu”, o LIVRO reforça a ideia de ter testemunhado não apenas eventos bíblicos, mas também toda a construção simbólica que envolve um dos ícones religiosos mais reconhecidos no mundo.


“E pra aquele que provar que eu tô mentindo eu tiro o meu chapéu”

Raul Seixas
Raul Seixas (1945–1989)

Nesse verso, o LIVRO desafia qualquer um a desmenti-lo, prometendo “tirar o chapéu” caso seja desmascarado. Sob uma ótica criativa, podemos associar o “chapéu” ao chapéu de mago usado por Merlin, o lendário conselheiro do rei Artur nas narrativas arturianas — como em “Historia Regum Britanniae”, de Geoffrey of Monmouth (séc. XII), e na obra posterior “Le Morte d’Arthur”, de Sir Thomas Malory (séc. XV).

O Mago Merlin é tradicionalmente ligado à consulta de grimórios, livros de feitiços e saberes ocultos que compõem parte importante do folclore medieval e renascentista. Exemplos de grimórios históricos incluem a “Clavicula Salomonis” (ou “Chave de Salomão”), atribuída ao rei bíblico, e o “Picatrix”, obra árabe de magia astrológica, traduzida para o latim na Idade Média.

Ao mencionar “eu tiro o meu chapéu”, o LIVRO pode estar se valendo da imagem do feiticeiro que se dispõe a abrir mão de seu símbolo de poder (o chapéu) e expor o conteúdo de seus grimórios, admitindo uma derrota intelectual ou mística — mas, ao mesmo tempo, reafirmando seu conhecimento ancestral e a confiança de que ninguém irá provar que ele está mentindo.


“Um dia, numa rua da cidade / Eu vi um velhinho sentado na calçada / Com uma cuia de esmola e uma viola na mão / O povo parou pra ouvir, ele agradeceu as moedas / E cantou essa música, que contava uma história /
Que era mais ou menos assim”

O LIVRO, que já foi saqueado, queimado e desvalorizado, que passou e ainda passa por muitos momentos de mendicância no sentido comercial, é o velhinho que vezes é exposto em calçadas por preços convidativos.

Ao observar cada trecho da canção “Eu nasci há dez mil anos atrás”, de Raul Seixas e Paulo Coelho, podemos concluir que o grande narrador desses acontecimentos — desde passagens bíblicas até cenas da literatura universal — é, na verdade, o LIVRO. É esse objeto milenar quem se apresenta como tendo surgido há dez mil anos, numa metáfora que ultrapassa a cronologia histórica para afirmar que o conhecimento, perpetuado pelos registros escritos (ou orais), atravessa tempos imemoriais.

Todas as cenas descritas na música — Cristo crucificado, a fuga de Zumbi, a destruição de Babilônia, a presença de Merlin e seus grimórios — são testemunhadas pelo LIVRO, que se faz onipresente em cada evento. Mesmo quando a realidade histórica não coincide exatamente com o imaginário de “dez mil anos”, o que prevalece é o sentido poético: o LIVRO assume ter recolhido todas as experiências e narrativas da humanidade, condensando em si mesmo a memória de mitos, guerras, lendas e crenças.

Esse papel onisciente reforça a ideia de que os livros (nos mais diversos suportes) são depositários das histórias que contam quem fomos, quem somos e quem poderemos ser. O LIVRO é o elo fundamental entre passado, presente e futuro: um repositório de vivências que remonta aos primórdios da civilização. Ao declarar “Não tem nada nesse mundo que eu não saiba demais”, o LIVRO sublinha sua condição de guardião do saber, convidando-nos a mergulhar na riqueza e na variedade das narrativas que carrega consigo.


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