O que um tipo de licença, criada por uma organização americana, sem nenhum respaldo na legislação brasileira, estaria fazendo em um edital para a compra governamental de livros?
Por Ednei Procópio
No Brasil, existem dois programas sociais básicos por meio dos quais o governo brasileiro provê às escolas de educação básica pública obras didáticas, pedagógicas e literárias. São eles o Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE) e o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD).
O Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) é a autarquia federal, vinculada ao Ministério da Educação, responsável pela operacionalização desses dois programas do livro. Vamos aqui, nesse artigo, no entanto, tratar especificamente do PNLD. Pesquisando sobre a questão dos livros digitais nas escolas, para um projeto que estou trabalhando, encontrei algo que me deixou, como diz o ditado popular, com a pulga atrás da orelha.
Para receber os conteúdos do PNLD, os dirigentes das redes de ensino municipal, estadual, distrital e das escolas federais encaminham termo de adesão manifestando seu interesse comprometendo-se a executar as ações do programa conforme legislação.
Existe, portanto, uma legislação específica que rege esses programas, entre eles o Decreto Nº 9.099, de 18 de Julho 2017, que dispõe exatamente sobre o novo Programa Nacional do Livro e do Material Didático.
E existe um edital, publicado pelo próprio Ministério da Educação, que estabelece regras para orientar as diretrizes a serem obedecidas no que concerne a oferta dos conteúdos. O edital tem por objeto a convocação de editores, detentores de direito exclusivo de reprodução, para participar do processo de aquisição de obras didáticas.
Logo no início do EDITAL DE CONVOCAÇÃO PARA O PROCESSO DE INSCRIÇÃO E AVALIAÇÃO DE OBRAS DIDÁTICAS PARA O PROGRAMA NACIONAL DO LIVRO E DO MATERIAL DIDÁTICO PNLD 2019, vemos o seguinte, no item 2.1.4.2:
“O material digital com conteúdo complementar, especificado no Anexo III, deverá ser disponibilizado em licença aberta do tipo Creative Commons – Atribuição não comercial (CC BY NC – 4.0 International ou CC BY NC – 3.0 BR).”
Oi?
O que um tipo de licença criado por uma organização americana, sem nenhum respaldo na legislação brasileira, estaria fazendo em um edital para a compra governamental de livros?
À propósito, o que é Creative Commons?
Bem, em primeiro lugar, Creative Commons não é um dispositivo legalmente válido no Brasil. Creative Commons não é, se quer, uma Lei. Creative Commons, na verdade, é uma organização não governamental americana que tem como objetivo, conforme reza seu próprio pressuposto, “expandir a quantidade de obras criativas disponíveis, através de suas licenças que permitem a cópia e compartilhamento com menos restrições que o tradicional todos direitos reservados“. Para esse fim, digamos, muito parecido com alguns dispositivos presentes na Lei de Domínio Público, foram criadas diversas licenças, conhecidas como licenças Creative Commons.
Mas, vou repetir a minha questão, para, quem sabe, alguém do Ministério da Educação me responda: o que um conjunto de licenças Copyleft, que inexiste no Brasil, de uma organização fundada em 2001, por Larry Lessig, sem nenhum respaldo na lei brasileira do Direito Autoral estaria fazendo num edital de um programa governamental?
As licenças Creative Commons não são dispositivos jurídicos legais, não cabem nas normas legais que regem os editais brasileiros. Não passam, na verdade, de uma padronização de declarações da vontade dos detentores de culturais em geral, como textos, músicas, imagens, filmes e outros. Creative Commons é um conceito que cria um contraponto ao Copyright, facilitando, claro, o compartilhamento de conteúdo na Internet, sob a égide de uma filosofia denominada Copyleft. Mas não poderia, nunca, ser, se quer citado em um edital de compras governamentais no Brasil. Primeiro, porque não cabe em nossa legislação, é um dispositivo estrangeiro. E segundo que abre brecha para que os materiais didáticos sejam abertamente pirateados no futuro.
No item 2.2.4.3 do EDITAL PNLD 2019, o texto insiste:
“O material digital com conteúdo complementar, especificado no Anexo III, deverá serdisponibilizado em licença aberta do tipo Creative Commons – Atribuição não comercial (CC BY NC – 4.0 International ou CC BY NC – 3.0 BR).”
Vamos ver o que diz a tal “Atribuição-NãoComercial 3.0 Brasil (CC BY-NC 3.0 BR)”, já que é tão citada no EDITAL PNLD 2019:
“Você tem o direito de:
Compartilhar — copiar e redistribuir o material em qualquer suporte ou formato
Adaptar — remixar, transformar, e criar a partir do material”
O texto da Atribuição – Não Comercial 3.0 Brasil (CC BY-NC 3.0 BR), afirma que o “licenciante não pode revogar estes direitos desde que você respeite os termos da licença”. Está bem. Mas desde quando quem faz a pirataria de conteúdo na Internet respeita alguma coisa? Não respeitam se quer a Lei de Direito Autoral em voga, quanto mais uma pseudo licença sem respaldo legal.
A Atribuição – Não Comercial 3.0 Brasil (CC BY-NC 3.0 BR) afirma que “você não pode aplicar termos jurídicos ou medidas de caráter tecnológico que restrinjam legalmente outros de fazerem algo que a licença permita”.
Sem sombra de dúvidas, um perigo sem precedentes para o controle dos direitos morais e patrimoniais dos escritores de livros didáticos e para as editoras. Não há nenhuma possibilidade de controle, nem da pirataria, que nas últimas décadas foi a responsável pela queda nos lucros das editoras, quem dirá depois que o governo brasileiro permitir que materiais didáticos sejam compartilhados indiscriminadamente através de uma licença unilateral. Estou seguro de que esse edital passa a ser inválido ou que, ao menos, esses itens, que citam licenças abertas do tipo Creative Commons, deveriam ser retirados.
A Atribuição – Não Comercial 3.0 Brasil (CC BY-NC 3.0 BR) afirma que eu poderia atribuir crédito apropriado, prover link para a licença e indicar se mudanças foram feitas no conteúdo, mas que eu não poderia comercializar o material, certo? Mas quem discordaria que eu poderia, usando a mesma atribuição, distribuir indiscriminadamente o tal material digital em qualquer projeto educacional privado, bastando para isso eu atribuir a tal licença Creative Commons.
Na prática a licença afirma que eu não devo comercializar o tal material, mas posso compartilhá-lo livremente. O Ministério da Educação não pode usar o Creative Commons em um edital, se o Creative Commons nem é Lei no Brasil. Aliás, Creative Commons nem sequer é uma Lei internacional. Assim como Creative Commons não é um dispositivo jurídico legal e válido no Brasil, também não é considerada uma Lei nos Estados Unidos. Licenças abertas do tipo Creative Commons são apenas um modo útil e simpático de padronizar alguns tipo de licenças previstas dentro da chamada Common Law, ou Direito Comum, que se desenvolveu em alguns países por meio das decisões dos tribunais, e não mediante atos legislativos ou executivos.
O EDITAL PNLD 2019 repete a fórmula no item 2.2.14.5 e no item 13.4, quando afirma que:
“Para a negociação de preços, o editor terá a opção de negociar os direitos autorais patrimoniais da obra ao FNDE, que passará a disponibilizá-la no PNLD como licença aberta do tipo Creative Commons – Atribuição não comercial CC BY NC – 4.0 International ou CC BY NC – 3.0 BR.”
E arremata o uso da licença aberta num verbete de dicionário, citado logo abaixo, que tenta explicar para editores incautos o significado daquilo que não deveria ser explicado, uma vez que nenhuma licença Creative Commons baseada no conceito Copyleft, pode ser usada para reger nenhum contrato de conteúdo, principalmente literário, aqui no Brasil:
“9. Licença aberta: para efeitos deste edital, é aquela que permite a que outros criem obras derivadas sobre a obra com fins não comerciais, contanto que atribuam crédito ao autor e que licenciem as criações sob os mesmos parâmetros, sendo permitido fazer o download ou redistribuir a obra da mesma forma que na licença anterior A licença deve ser do tipo Creative Commons – Atribuição não comercial (CC BY NC – 4.0 International ou CC BY NC – 3.0 BR).”
No Anexo III, do Edital PNLD 2019, você tem uma boa ideia de que tipo de Material Digital estamos tratando. Vai desde textos , materiais gráficos, esquemas, ilustrações, cartazes, desenhos, figuras etc. que (…) deverão estar relacionados de forma explícita aos temas apresentados nos livros que o programa adquire. Além de materiais lúdicos, de avaliação, relatórios, fotografias, desenhos, álbuns etc., ou seja, todo o tipo de conteúdo passível de Direito Autoral.
No Brasil, a Lei de número 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, é única que consolida a legislação sobre Direitos Autorais. A Lei 9.610 regula os Direitos Autorais em nosso País, entendendo-se, sob esta denominação, os direitos de autor e os que lhes são conexos. O EDITAL PNLD 2019 tem que usar e respeitar a Lei 9.610 e não ignorá-la como se ela tivesse sido revogada.
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Ednei Procópio é Escritor e Editor especialista em livros digitais.